Sunday, November 24, 2013

 

Rentes de Carvalho




"Feliz o que tem disposição e oportunidade para brincar. É um privilégio que a poucos cabe."
J. Rentes de Carvalho




Sendo eu um leitor veterano, o acaso só este verão me deu a conhecer o escritor J. Rentes de Carvalho. Antes tarde que nunca.
Li o Tempo Contado com muita satisfação e desde aí ando a ler o blog com o mesmo nome e vários livros do autor.
A inteligência, o humor, a irreverência, a formidável capacidade de observação, a franqueza, fazem dos seus escritos uma fonte de prazer.
Vou continuar atento a tudo o que publique e torcendo para que a sua lucidez e criatividade se mantenham por muito tempo, para alegria dos seus apreciadores, entre os quais agora me incluo.



Thursday, November 21, 2013

 

Aldeia















Nasci e cresci numa aldeia alentejana sem esgotos ou água canalizada, com ruas de terra e pó no verão e muita lama e poças de água da chuva no inverno.
Bem a procurei nos mapas escolares mas não constava. Era insignificante demais para os cartógrafos, embora fosse para mim o mundo quase todo.
A maioria das casas, quase todas, ignoravam o que fosse uma casa de banho. Os dejetos eram lançados fora numa pá com terra, para o campo, que começava a poucos metros do meu quintal. Os invariáveis banhos dominicais eram num alguidar de zinco.
Não havia qualquer eletrodoméstico, nem telefone ou televisor.
O meu pai, lá pelos meus seis anos (1966) comprou um rádio grande, novinho, Siemens, que foi a maravilha da minha casa e o espanto e talvez inveja da minha rua.
Vinham quase todas as tardes as vizinhas ouvir rádio conosco, aproveitando para coscuvilhar e trazer as novas da aldeia.
Foi esse rádio, orgulho da família, que me deu a conhecer a música e os artistas da época. Lembro-me dos Beatles e do Chico Buarque mais a sua Banda. E a moçada trauteava essas e outras músicas pelas ruas.
Como não tinha brinquedos nem conhecia ninguém que os tivesse, brincávamos nas ruas e nos campos próximos, inventando macacadas que muito nos divertiam.
É um lugar comum, mas sei que fui muito feliz na minha aldeia.
Mesmo um ou outro aspeto mais rebarbativo a distância de meio século fez o favor de adoçar. Como o mau génio autoritário do meu pai e as terríveis reguadas da professora Felicidade (?!).
Apesar de pobres, os meus pais admiravam o seu rebento. E a inteligência que parecia ter na escola. E sendo filho único, acarinharam o sonho de que estudasse e pudesse sair da vida pequena e dura que conheciam. Viesse, enfim, a ser alguém.
Graças ao sonho deles e à sorte de ter saúde, curiosidade e boa memória, que compensaram a preguiça, fui avançando com certa facilidade nos estudos e aos 23 era doutorzinho de leis.
O primeiro da minha família a ter um canudo. Não digo isto com orgulho, mas apenas como um facto. O mérito foi mais dos meus pais, que me incentivaram e ajudaram do que meu, que aproveitei as circunstâncias favoráveis e quis corresponder um pouco ao muito que de mim esperavam.
Direito foi escolhido por esclusão de partes, mas também pelo fascínio e temor que as coisas do poder sempre me causaram. Uns usam-no, outros sofrem-no. O Estado usa-o em ponto grande e o Direito e os tribunais são alguns dos seus instrumentos.
Intrigava-me esse mundo e por ali fui farejar. A eloquência de alguns professores embasbacava-me e algumas matérias não eram de todo desinteressantes.
Também por exclusão de partes acabei por seguir advocacia, onde ando há quase três décadas, sem grande sucesso, é certo, mas também sem grandes motivos para me envergonhar.
Para desilusão dos meus pais, não cheguei propriamente a ser alguém. O sucesso, (que para a minha mãe seria ser admirado por muitos, para o meu pai, temido por todos e para ambos, tornar-me uma espécie de rico) não o avistei. Acho mesmo que vim caminhando no sentido oposto, guiado sobretudo pelo acaso e pelo coração.
Acumulei muito conhecimento inútil, aproveitando as circunstâncias favoráveis à minha curiosidade. E o que preciso saber para viver mal me vai chegando.
Creio que justamente o oposto dos meus antepassados.
Voltei sempre à minha aldeia, àquela que hoje está no lugar onde a minha foi. Esta Jungeiros já tem tudo como as demais e até vem na net. Muitas modernices e alguns confortos. Muitos velhos e poucas crianças e jovens. A escola da minha quarta classe, novinha em folha, com tudo a cheirar a novo, mora na minha memória, mas fechou há pouco por falta de alunos.
As pessoas de outrora passeiam por aquelas ruas, entram naquelas casas, conversam pelas esquinas não sei bem o quê. Ninguém as pode ver, mas para mim continuam lá.
Por isso a minha aldeia está sempre cheia de gente. Lá, nunca me sinto só.
Transplantei algumas raízes da minha aldeia para o coração da mulher que partilha a minha vida. Com ela por perto também nunca me sinto só.


Mesmo sabendo que ser só é a nossa condição e o nosso inevitável destino.

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